quatro pontos dentro da curva

Taste-of-Cherry-2

“Agora penso que é bom perder a confiança no solo, que é necessário saber que de um momento para outro tudo por vir abaixo”. (Alejandro Zambra em “Formas de voltar pra casa”).

[um: rua, olho, sugestão]

Sumirê

É o nome de uma perfumaria

Na rua Teodoro Sampaio

Amanhã passo lá

E pergunto se eu posso

Usar esse nome

Num poema sem qualidade

Cuja única ambição

É achar uma expressão

Que dê conta

Dessa vontade

De virar folha em branco

[dois: observação, imaginação, ação]

Sábado, 25 de março de 2017, 6h30. Bahia acorda e a primeira coisa que seus olhos registram é o teto branco do seu quarto. Repara no branco – acha-o muito bem pintado. Toma um banho rápido, veste as roupas de trabalho, bebe um café na velocidade de um suspiro, escova os dentes, não dá tchau nem para a mulher, nem para os filhos, menos por descuido do que para não acordá-los, ganha a rua, caminha até o ponto de ônibus, espera sete minutos e trinta e quatro segundos até que o carro pare na sua frente e ele se deixe entrar, pagar a passagem e sentar na poltrona do fundo, a última, o que lhe recorda os tempos de escola, quando chegava na sala de aula também muito cedo, também muito disposto, e se escondia lá atrás onde a professora não pudesse vê-lo. Mais de uma hora depois, Bahia desce do ônibus e caminha por treze minutos e cinquenta segundos até parar em frente ao prédio localizado à rua Girassol, número quatrocentos e oitenta e oito, onde, das nove ao meio dia, Bahia fará com que a vida dos moradores do apartamento cinquenta e um fique um pouco mais colorida, porque, por suas mãos, uma mesa branca será a partir de agora reluzentemente amarela e uma porta de um marrom taciturno deixará pra trás qualquer vestígio de marrom ou taciturnidade porque pelas mãos de Bahia agora ela é verde clarinha, clarinha.

[três: memória, busca, coração]

Lembra de você me chamando pra ir ao cinema depois de amanhã? Você falava outra língua e eu temia a minha má tradução. Dois dias depois, você estava lá, e eu agradeci silenciosa e efusivamente à professora Maria Laura Rodrigues Alves.

[quatro: ontem, hoje, agora]

Vivendo eternamente dentro do peito do homem, suas versões passadas raramente celebram em conjunto. Isso se dá, e não deixa de parecer óbvio, porque cada um dos que protagonizou a vida do homem antes do momento presente são de idades, épocas e culturas diferentes. A sua variante criança, por exemplo, adora quando os domingos passam devagar na mesa da cozinha da avó. Já o adolescente não suporta uma coisa assim – preferia jogar videogame com alguns amigos, o que desagrada em completo seu sucessor, o universitário, que vê nesse ato um desperdício de tempo enquanto questões políticas, sociais e espirituais clamam por atenção. De modo que ao homem era impossível não notar o que se passou hoje: normalmente barulhentos dentro do seu coração, todos eles amanheceram em festiva harmonia. A mulher, que estava à frente do homem naquele momento, os olhos plantados nos seus, não sabia nada disso, mas sorria.

“How is it feel to disappear?

Seriously, just disappear?” (The Acorn, “Oh! Napoleon”).

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imagem: Taste of Cherry / 1976 / Abbas Kiarostami

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