[frases e histórias que ouvi ou que me contaram durante um sábado, primeiro dia de junho de 2018, todas testemunhadas em São Paulo, capital]
primeira
“o que é isso, mãe?”. a menina caminhava puxando o vestido da mulher, que tinha os passos acelerados. pareciam atrasadas para algum compromisso extremamente sério às 6 e 20 da tarde. a mãe apenas desviou o olhar para onde a filha apontava e respondeu “não sei”. mas dois passos depois resolveu parar, e ao parar, a menina trombou-lhe a perna, mas creio que a mãe não viu, dadas as ondas de confusão e nostalgia que vestiam seu rosto, como quando encontramos alguém do passado no estacionamento da farmácia. “isso é um cinema”, respondeu. naquele instante, era como se o mundo lá fora tivesse entrado num acordo: vamos ficar quietinhos para não atrapalhá-las.
os olhos da menina estavam fixos, e assim se dava também com os pés da mãe. elas apenas miravam não sei se para as luzes, para o entra e sai de pessoas, para os cartazes ou será que…
um instante é muito, mas acaba, e logo o mundo voltou a fazer barulho, a mãe voltou a sentir o tempo, e puxou a filha para seguirem caminhando pela calçada. a menina acompanhou-a, mas dessa vez apenas dos pés aos ombros, porque sua cabeça insistia em contemplar mais um pouco aquela vitrine cheia de luzes, pessoas, cartazes e um cheiro de pipoca e café.
segunda
“senhor, aqui estão seus cafés”, informou a atendente, estendendo a bandeja a um homem gordo e barbudo, cuja idade – não mais que 30 anos – se deixava ver no rosto juvenil, alguém de cujos olhos é possível dizer que não envelheceram, embora não se saiba se por dádiva biológica ou pelo pouco uso. o homem se aproximou do balcão e apenas olhou para a bandeja e os cafés. chamou a atendente.
– “vem aqui”.
seu tom de voz era firme, duro, e seu semblante transmitia irritação e impaciência. era possível supor que ele já tinha estado assim outras vezes. o figurino, misteriosamente, lhe caía bem. a atendente se aproximou.
– “olha, você precisa saber de uma coisa” – assim ele começou, e imediatamente a atendente encolheu os ombros, como fazem as crianças quando percebem a chegada da grande bronca adulta.
– “o preço desses cafés é um absurdo. uma pessoa que ganhe… sei lá… dois, três salários mínimos não pode vir aqui tomar café. cê ta me entendendo, moça? eu ganho 25 salários mínimos por mês e” – nesse momento ele pausou o discurso para enfim retirar a bandeja do balcão, indicando que estava de saída – “e posso te garantir que estou achando bastante caro”. com a bandeja nas mãos e os cafés com aspecto frio, saiu bruscamente, a buscar uma mesa. a funcionária seguia de cabeça baixa e não o viu debandar. permaneceu assim, provavelmente apostando que a bronca continuaria – ela apostaria também que ele estava nesse momento olhando-a com braveza.
um funcionário vinha trazendo os lixos que recolhera nas mesas e, ao ver a colega de cabeça baixa, aproximou-se. “tá sem nada pra fazer, amiga? pega o paninho, vai dar uma limpada nas mesas! acorda! acorda! acorda!”
terceira
na rua, eles param um instante para decidirem onde vão. onde vamos, pergunta um. não dá tempo do outro responder. uma mulher se aproxima. “boa noite, senhores”. ela veste jaqueta jeans, blusinha colorida e shorts. seu cabelo há dias não vê água e seu aspecto, em geral, não é saudável. seria fácil incluí-la no numeroso elenco de seres em modo zumbi que flanam tristemente pelas movimentadas ruas da região central da cidade. os dois lhe dão boa noite, e a mulher fala de novo. “sou de Santiago…do Chile”. faz uma pausa. “Santiago, do Chile… que fica no México… terra de Elvis Presley e Julio Iglesias”. nova pausa. seu olhar mira a longa avenida iluminada por faróis de carros. fica assim por alguns segundos, e depois retorna, ansiosa. “e então, vocês podem me ajudar?”. um diz algo como “desculpa, não tenho nada”, e o outro diz só “é, desculpa”. a mulher fita-os por um instante, e se despede com um “tchau pra vocês”, em perfeito português.
quarta
na reunião com os gestores, ela se cansou mais rápido do que seus colegas. os chefes abusavam do vocabulário acadêmico, mas tudo que ela sentia era a presença de apenas uma palavra.
eu
eu
eu
notou que o amigo ao lado acabara de entregar os pontos também. pegou um papel e escreveu:
egos
e discretamente passou-o ao amigo. ao ler, ele lhe devolveu um olhar de cumplicidade. pegou o mesmo papel e adicionou apenas uma letra.
cegos.
quinta
antes de dobrarem a esquina buscando o caminho de casa, ela disse:
– agora que você me ensinou a ver a vida como um filme, fudeu.
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foto: Wim Wenders