caminando por la calle yo te vi

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[frases e histórias que ouvi ou que me contaram durante um sábado, primeiro dia de junho de 2018, todas testemunhadas em São Paulo, capital]

primeira

“o que é isso, mãe?”. a menina caminhava puxando o vestido da mulher, que tinha os passos acelerados. pareciam atrasadas para algum compromisso extremamente sério às 6 e 20 da tarde. a mãe apenas desviou o olhar para onde a filha apontava e respondeu “não sei”. mas dois passos depois resolveu parar, e ao parar, a menina trombou-lhe a perna, mas creio que a mãe não viu, dadas as ondas de confusão e nostalgia que vestiam seu rosto, como quando encontramos alguém do passado no estacionamento da farmácia. “isso é um cinema”, respondeu. naquele instante, era como se o mundo lá fora tivesse entrado num acordo: vamos ficar quietinhos para não atrapalhá-las.

os olhos da menina estavam fixos, e assim se dava também com os pés da mãe. elas apenas miravam não sei se para as luzes, para o entra e sai de pessoas, para os cartazes ou será que…

um instante é muito, mas acaba, e logo o mundo voltou a fazer barulho, a mãe voltou a sentir o tempo, e puxou a filha para seguirem caminhando pela calçada. a menina acompanhou-a, mas dessa vez apenas dos pés aos ombros, porque sua cabeça insistia em contemplar mais um pouco aquela vitrine cheia de luzes, pessoas, cartazes e um cheiro de pipoca e café.

segunda

“senhor, aqui estão seus cafés”, informou a atendente, estendendo a bandeja a um homem gordo e barbudo, cuja idade – não mais que 30 anos – se deixava ver no rosto juvenil, alguém de cujos olhos é possível dizer que não envelheceram, embora não se saiba se por dádiva biológica ou pelo pouco uso. o homem se aproximou do balcão e apenas olhou para a bandeja e os cafés. chamou a atendente.

– “vem aqui”.

seu tom de voz era firme, duro, e seu semblante transmitia irritação e impaciência. era possível supor que ele já tinha estado assim outras vezes. o figurino, misteriosamente, lhe caía bem. a atendente se aproximou.

– “olha, você precisa saber de uma coisa” – assim ele começou, e imediatamente a atendente encolheu os ombros, como fazem as crianças quando percebem a chegada da grande bronca adulta.

– “o preço desses cafés é um absurdo. uma pessoa que ganhe… sei lá… dois, três salários mínimos não pode vir aqui tomar café. cê ta me entendendo, moça? eu ganho 25 salários mínimos por mês e” – nesse momento ele pausou o discurso para enfim retirar a bandeja do balcão, indicando que estava de saída – “e posso te garantir que estou achando bastante caro”. com a bandeja nas mãos e os cafés com aspecto frio, saiu bruscamente, a buscar uma mesa. a funcionária seguia de cabeça baixa e não o viu debandar. permaneceu assim, provavelmente apostando que a bronca continuaria – ela apostaria também que ele estava nesse momento olhando-a com braveza.

um funcionário vinha trazendo os lixos que recolhera nas mesas e, ao ver a colega de cabeça baixa, aproximou-se. “tá sem nada pra fazer, amiga? pega o paninho, vai dar uma limpada nas mesas! acorda! acorda! acorda!”

terceira

na rua, eles param um instante para decidirem onde vão. onde vamos, pergunta um. não dá tempo do outro responder. uma mulher se aproxima. “boa noite, senhores”. ela veste jaqueta jeans, blusinha colorida e shorts. seu cabelo há dias não vê água e seu aspecto, em geral, não é saudável. seria fácil incluí-la no numeroso elenco de seres em modo zumbi que flanam tristemente pelas movimentadas ruas da região central da cidade. os dois lhe dão boa noite, e a mulher fala de novo. “sou de Santiago…do Chile”. faz uma pausa. “Santiago, do Chile… que fica no México… terra de Elvis Presley e Julio Iglesias”. nova pausa. seu olhar mira a longa avenida iluminada por faróis de carros. fica assim por alguns segundos, e depois retorna, ansiosa. “e então, vocês podem me ajudar?”. um diz algo como “desculpa, não tenho nada”, e o outro diz só “é, desculpa”. a mulher fita-os por um instante, e se despede com um “tchau pra vocês”, em perfeito português.

quarta

na reunião com os gestores, ela se cansou mais rápido do que seus colegas. os chefes abusavam do vocabulário acadêmico, mas tudo que ela sentia era a presença de apenas uma palavra.

eu

eu

eu

notou que o amigo ao lado acabara de entregar os pontos também. pegou um papel e escreveu:

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e discretamente passou-o ao amigo. ao ler, ele lhe devolveu um olhar de cumplicidade. pegou o mesmo papel e adicionou apenas uma letra.

cegos.

quinta

antes de dobrarem a esquina buscando o caminho de casa, ela disse:

– agora que você me ensinou a ver a vida como um filme, fudeu.

***

foto: Wim Wenders

Movimentos bailarinos

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Em uma circulada de meia hora pela cidade, a esperança se renova e a certeza se impõe: o Brasil não é o país de Michel Temer. No ponto de ônibus, o vento gelado que varre a avenida faz um casal de mulheres se abraçar mais forte. Dentro do ônibus, há pessoas: negros, brancos, pardos e um sujeito de traço indígena digita freneticamente no celular. De volta à rua, uma mulher comanda sozinha uma banca de jornais de intenso movimento diversificado (mendigos, engravatados, turistas). Na padaria, duas meninas pertencentes à mais alta classe social brasileira conversam histericamente sobre política; criticam o novo governo, defendem Dilma, dizem ter chorado algumas vezes imaginando qual será o futuro do país. Um sujeito está sentado ao lado e ouve tudo de camarote. Seu semblante indica discordância daqueles pontos. Ele se aproxima das meninas, pede desculpas por interrompê-las e diz baixinho: não concordo com vocês, mas estou muito feliz de vê-las lutando pelo que acreditam. As meninas quase engasgam com o suco detox. De volta à rua, entro num centro cultural onde crianças deficientes apresentam um espetáculo de dança bem no meio do saguão. Elas fazem movimentos bailarinos. Algumas usam o chão como apoio; outras, em cadeiras de rodas, mexem os braços e o pescoço. Quase todas fecham os olhos. Um trompetista e um pianista fazem ao vivo a trilha sonora daquele show. Nas mesas espalhadas pelo saguão, estudantes – a maioria formado por mulheres negras – estão debruçados sobre livros, apostilas e cadernos. O silêncio impera. Apenas uma vez, escuta-se uma gritaria: é quando chega o senhor Ademir, colega de uma das turmas. Ele tem 61 anos, usa uma camisa social marrom desgastada e traz na mão um grande papel enrolado, que ele logo abre sob a mesa. É uma planta de um projeto de arquitetura. A turma bate palmas. Um deles diz: Seu Ademir vai se formar como primeiro da turma, vocês vão ver!

***

* inspirado no artigo “Nós Acusamos”, de Vladimir Safatle, publicado na última sexta na Folha de S. Paulo. leia aqui.

um trecho do que li

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[livro] Por uma literatura sem adjetivos

[autor] María Teresa Andruetto

[editora] Pulo do Gato

[trecho] “Toda escrita é experimental, já que, se for genuína, constitui uma exploração intensa da palavra e uma experiência profunda no seio de si mesmo. A verdadeira originalidade é uma fuga da repetição de si mesmo, da cópia de si mesmo, e consiste em entender cada projeto de escrita como uma nova exploração”.

sobre cigarros e começos

Um dia, um escritor sentado na cadeira giratória que se encaixa perfeitamente à escrivaninha de madeira encostada na parede esquerda de seu quarto se desafiou a escrever uma história com xxx caracteres.

Começou. “Era uma vez um jovem que se desafiou a escrever uma história em no máximo xxx caracteres”.

“Muito fraco esse começo”, disse pra si mesmo, ajeitando a bunda na cadeira giratória que há anos sustenta seu peso cada vez maior e que se encaixa perfeitamente à escrivaninha de madeira encostada na parede esquerda de seu quarto.

“Não posso iniciar o texto dessa forma. Um começo tem que trazer em si toda a força do livro. Kafka em O Processo. “Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã”. Garcia Marquez em Cem Anos de Solidão. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Reinaldo Moraes em Tanto Faz. “Chega no studiô e cai matando numa cerveja gelada. Arroto formidável de barítono, que lhe evoca os sabores distantes do jantar. Janela escancarada para o verão. Abafamento. Madrugada”.”

Então se desafiou a reescrever a primeira frase de sua história.

“Era uma vez um homem prestes a fumar o último cigarro disponível no planeta”.

Logo acabou de escrever, deixou sua caneta Bic cor azul cair sob a madeira levemente empoeirada da escrivaninha e com a mão direita segurando o queixo, se pôs a pensar: imagine se eu tivesse um cigarro na mão e ele fosse o último cigarro do planeta.

Abandonou a ideia estúpida de escrever um texto em xxx caracteres, a bobagem de pensar sobre as primeiras palavras dos bons livros e, principalmente, a idiotice de que um dia o mundo poderá existir sem cigarros (sem água, sim, daremos um jeito – mas e quando quisermos fumar?)

Retirou dois cigarros de seu maço cheio e acendeu-os simultaneamente.

Baforou.

Respirou aliviado.

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Rafael Consoni e sua ilustração criada especialmente para este conto

2 minutos na sala de espera

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ilustração produzida especialmente para este conto: Rafael Consoni

O senhor vai ter que esperar, diz a pessoa. Ele senta e se pergunta o que pode fazer enquanto espera. Tem algum trabalho para adiantar? Uma ligação a fazer, um biscoito guardado na mochila pra comer? Talvez ouvir música, “partir, andar”, sentir aquele frio na barriga que só entre os 14 e os 17 anos Deus permite que o ser humano sinta. Mas logo senta um cara ao seu lado, com fones azuis enormes tampando as orelhas, a música alta, parece Jane’s Got a Gun, do Aerosmith. Se eu tivesse uma arma, o que faria? Na televisão preta presa na parede da sala branca, um cachorro está  ajudando um policial a solucionar um crime.

Cachorros podem ser estrelas de cinema, ele pensa, enquanto vai lembrando de cada um dos cães que já passaram por sua vida: Billy, Cosquinha, Fred, Stuart.

Ele começa a gostar da sala de espera. Olha-a com atenção. São 6 pessoas dispersas em um espaço de não mais que 20 metros quadrados, contando com ele. Todas possuem expressões cansadas. Nesse momento ri, porque pensa que o Seu Eurípides pedreiro diria que todas estão na verdade é com uma cara de bosta mesmo. Então, cara de bosta por cara de bosta,  ele pensa, melhor eu ficar divagando sobre coisas nada a ver – adolescência, armas, cachorros –  do que ler essas revistas velhas ou tentar acompanhar a aventura do policial na tevê.

Finja que é um ET em sua primeira visita à Terra e tente entender a seguinte situação: você vê seres humanos acordando em suas casas, saindo debaixo de suas cobertas quentes, tentando manter os olhos abertos enquanto procuram o despertador para desligá-lo. Esses seres humanos escovam os dentes (outros não, é verdade) e tiram suas confortáveis roupas para vestir, em seu lugar, roupas que normalmente não vestiriam (vale para homens e mulheres). Depois saem de casa correndo, tomam chuva, estão apressados, na verdade estão muito apressados e talvez por isso não dão a mínima para os outros seres humanos que estão fazendo a mesma sequência de ações ali ao lado, todos os dias; chegam a um local denominado “trabalho” e por lá ficam o dia todo, esse local que normalmente não bate luz, ou bate menos luz do que na praça ali perto. Na hora do almoço costumam comer no que se denomina “restaurantes” – objetivo: oferecer comida em troca de dinheiro – e frequentemente batem fotos de seus pratos e mostram para as pessoas ao lado, (verificar se as pessoas ao lado não possuem o sentido “visão”). Voltam ao trabalho, ficam lá até as primeiras horas da noite, quando você vê esses seres humanos saindo desses locais e dirigindo-se às suas casas, embora alguns passem antes no que se chama “supermercado”, onde escolhem objetos das mais variadas formas e desembolsam dinheiro por eles. Finalmente chegam em casa, colocam aquela roupa que tiveram de tirar mais cedo, entram embaixo das cobertas; há um segundo grupo que chega em casa e sempre encontra outros seres humanos, com os quais parece manter relações muito mais próximas e verdadeiras (verificar porque não passam o dia com essas pessoas e sim com aquelas pessoas que se vestem estranhamente no “trabalho”) e

Logo perde a linha de raciocínio, e começa a repetir para si mesmo “é muito curioso, é muito curioso pensar nisso tudo”. Todo mundo está correndo. Correndo atrás de dinheiro. Então, como explicar a um extraterrestre que existem milhares (milhões) de máquinas espalhadas pelo mundo, cuja função é guardar dinheiro e, sob um apertar de botões, liberá-los para você?

–       Mas todo mundo pode fazer isso?

–       Não, eu responderia para o ET.

–       Porque? Quem diz?

–       Não sei.

–       Mas o dinheiro é feito por quem?

–       Pelo governo, eu acho.

–       E o governo é feito por quem?

–       Por pessoas representando o povo.

–       E o povo é quem?

–       O povo é todo mundo, ué.

O cara que ouve Aerosmith agora está escutando Offspring, esse maluco tá perdido nos anos 90 ou o quê?, se bem que tem algumas músicas dessa década que eu

…mas aí chega um e-mail no seu celular, ele imediatamente esquece o ET e pensa no que responder à mensagem, e lá fora começa a chover, ele se arrepende de nunca ter comprado um guarda-chuva, a pessoa chama por seu nome, ele se levanta e entra na sala.

ilustração produzida especialmente para este conto: Rafael Consoni

O segredo de Elias

Uma ida ao Poupa Tempo revela que o ser humano é fabuloso, o mundo é que não é legal

arte de Stocker

Peraí, vou acender um cigarro. Pronto.

O ônibus Terminal Santo Amaro 669-A passa na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, região central de São Paulo. São 17h54 e todos os assentos estão ocupados por estudantes, senhoras cansadas, senhoras felizes, senhores descabelados, atendentes de telemarketing e ex-ascensorista das Casas Bahia. O ônibus está parado e nele entram 6 pessoas, contando comigo, sendo 2 homens e 3 mulheres. Dou boa tarde ao motorista e recebo um simpático aceno de cabeça de volta.

Estou feliz. Aquela é a última vez que pego o Terminal Santo Amaro nas condições históricas e culturais em que me encontro, ou seja, empregado com carteira assinada por uma grande corporação da cidade. Sweet Jane, do Velvet Underground, toca no último estágio do volume do meu celular-mp3, uma senhora levanta para descer no próximo ponto e o motorista acaba de dar uma freada brusca porque o sinal fechou em cima dele.

Em pouco mais de 10 minutos estou na Avenida Paulista, e é ali que eu desço para pegar o metrô linha verde, que me deixará na estação Paraíso/linha azul, que por sua vez me levará a um dos mais gloriosos destinos turísticos paulistanos, a praça da Sé. São 18h12 quando desço na estação homônima e rapidamente encontro as escadas rolantes que me levarão à praça de fato.

Estou em busca de um lugar chamado Poupa Tempo, que recebe em média 16 mil pessoas por dia em busca de milhares de serviços variados como atestado de antecedentes criminas, autorização para colocação de tapumes, certidão de não localização de veículos furtados ou roubados e, um dos mais simpáticos da lista, o seguro desemprego, meu alvo naquela noite.

A Praça da Sé está escura e eu esqueci minha bússola suíça digital. Resolvo não discriminar gênero de classe, cor, sexo ou idade e pergunto a um transeunte qualquer onde fica o Poupa Tempo. Sou recebido calorosamente por um estudante de não mais de 18 anos, aparelho nos dentes, fones pretos na orelha tocando alguma guitarra muito alta, que não se limita a me apontar a direção certa.

– Chega aí que eu te mostro onde é.

Automaticamente meu corpo e mente recebem torpedos virtuais oriundos do meu pai e da minha mãe, dizendo “cuidado filho esse cara pode ser ladrão sai daí agora bjo mãe”. Mas aquele cara só queria ajudar, então eu o agradeço com dois “valeu” e sigo rumo ao meu destino.

– Oi. Vim solicitar Seguro Desemprego. Onde fica o guichê?

– …

– Moça?

– hahaha

– Porque você tá rindo?

– Porque eu esqueci onde você deve ir! Calma… eu repito isso o dia inteiro, meu Deus… Ah, sim, na Praça Verde.

– Tem uma praça verde aqui dentro!?

– Não, moço, é só o nome do guichê…

Vou em direção à praça verde pensando como José Simão gostaria de saber que, em São Paulo, praça verde só no Poupa Tempo da Praça da Sé.

– Moço, aqui que eu peço Seguro Desem…

“Só-seguir-a-linha-laranja-até-o-fim-e-virar-a-direita” é a resposta, num tom telemarketiano de dar inveja à atendente da Claro. Sigo a linha. Sou rapidamente atendido por um cabeludo de pouco mais de 30 anos, tatuagem nos dois braços e corrente metaleira no pescoço. Seu tom de voz surpreende e estranhamente lembra o do locutor da Rodoviária do Tietê. Tudo bem explicado, carimbado, assinado e certificado por nosso Andreas Kisser da Praça Verde, sou enviado para outra fila. Nas mãos tenho a senha 537, com a qual serei atendido na cabine 6 por uma mulher.

Sheila tem 24 anos e senta ao lado do Wagner (careca, sério), Eneida (40 e poucos anos, risonha) e Débora (alta, chefe de todos eles). Ela é simpática e tímida. Responde aos meus questionamentos com objetividade e graça. Olha meus papéis, me explica as mesmas coisas que o nosso metaleiro de minutos atrás já havia falado e digita no teclado enquanto ri de Eneida. Esta, por sua vez, está atendendo na cabine de número 7 o auxiliar de limpeza Elias (atarracado, cara de cansado), um sujeito que veio em busca de seu seguro desemprego (é nóis, Elias!), mas por algum “erro do sistema”, nunca consegue sacar o dinheiro. Sheila ri, Eneida não entende, mas daqui a pouco vai entender. Enquanto isso, Sheila me faz a primeira pergunta fora dos padrões.

– Estou vendo que você é formado. Em que?

– Jornalismo.

– Eu também fiz Jornalismo!

– É mesmo? E porque trabalha aqui?

– Nunca consegui nada na área que pagasse o valor que recebo aqui no Poupa Tempo.

– Ah, ser jornalista é não ganhar dinheiro. Mas você devia tentar. Você se formou em qual faculdade?

– São Judas, e você?

– Mackenzie.

– Anh.

Sheila parece ser a funcionária exemplo. Além de quieta e eficiente, é a mais procurada pela Eneida e pelo Wagner quando ambos têm dúvidas. Ela responde educadamente aos dois enquanto digita meus dados (ou não) em seu computador branco.

– Este lugar que você trabalhou fica na Praça Charles Miller, sem número?

– Isso.

– Porque lá não tem número?

– Não sei, lá é o estádio do Pacaembu.

– Ah, que legal! Lá tem um museu né?

– Sim! Era no museu que eu trabalhava.

– Uma vez eu fiz entrevista de estágio em jornalismo em uma assessoria de imprensa que cuidava da conta desse museu.

– Sério? Antes do museu eu trabalhei em uma assessoria de imprensa que cuidava desta conta, e até por isso que acabei indo trabalhar no museu depois.

– Essa assessoria fica na Vila Olímpia?

– Fica. Não acredito que nós fizemos entrevista para o mesmo lugar!

Sim, caro leitor. Após comprovações de ambas as partes, eu fiz entrevista para a mesma vaga, na mesma época, no mesmo lugar que a Sheila, a menina morena cheia de espinhas que se formou em jornalismo mas trabalha no Poupa Tempo. Eu consegui a vaga, ela não. 3 anos depois, cá estou eu pedindo seguro desemprego porque dei de doido e larguei meu trabalho. E lá está ela.

Entabulamos um papo sobre jornalismo enquanto a Eneida explicava pacientemente ao Elias que sim, a documentação dele estava ok, mas não, ele não ia sair dali com dinheiro nenhum. O velho “erro de sistema” está acima da lógica humana, e era preciso fazer um protocolo no Ministério do Trabalho, que teria milhões de dias úteis para resolver. Elias não gosta do que ouve. Sheila ri. Eneida não entende de novo.

– Trabalhar no Poupa Tempo deve te dar muita história pra contar.

– Você nem imagina. Tem cada figura, cada novela.

– Faz isso um dia – eu a encorajo enquanto penso que não seria nada mal arrumar um emprego daquele, recolher as melhores histórias possíveis, lançar um livro que virariva filme, peça e minissérie ao mesmo tempo e, satisfeito, ir viver em Zóio D’água para sempre.

Elias se levanta para ir embora, Wagner diz “até a próxima”, e eu estranho: até a próxima? Isso é lá coisa que se diga em guichê de seguro desemprego? Mas Elias sai, e todos começam a rir (menos Eneida).

– Do que vocês estão rindo?

– Eneida, você caiu na maior pegadinha do Poupa Tempo!

– ..Pegadinha, gente? Como assim? Débora, que que é isso?

A Débora ri, o Wagner coça a cabeça e a Sheila solta pequenas risadas discretas enquanto segue movendo seus dedos rápidos no teclado empoeirado.

– O Elias vem aqui todo dia.

– ..Como assim?

– Todo dia ele vem aqui saber se tem direito a seguro desemprego, e todo dia nós temos que explicar a ele que não. Já faz mais de um ano que ele bate carteira na nossa seção, mas você é nova e nunca viu. Hoje foi a primeira vez que o sistema autorizou o recebimento. Mas bem hoje foi dar esse maldito erro!

Quem fala é a Débora. A Eneida está em choque. “Eu fiquei com dó dele”, ela suspira. A Sheila explica. “O lance dele é trabalhar, trabalhar, até dar a data de receber seguro desemprego. Aí ele força sua saída da empresa e vem aqui. Olha a ficha dele. Ele não fica mais de 1 mês em nenhum emprego”. Wagner está com a ficha na mão e confirma:

– Última empresa dele, entrada 11 de maio, saída 26 de maio. Penúltima empresa: entrada 20 de fevereiro, saída 03 de março. Na antepenúltima ele ficou nem 10 dias!

Todos riem, Sheila também, embora digite.

– Viu? Esta história é boa, você deveria escrevê-la.

– É, quem sabe…

– Posso escrever essa um dia?

– Pode.

50 discos para 365 dias de 2011

Quando me pediram para fazer uma lista com os dez melhores discos do ano para o site da Trip eu fiquei em pânico. Na hora já imaginei a lista ficando igual a todas às outras mil listas de outros sites, revistas e jornais, com aquelas bolas de segurança e com os artistas mais hypados (meu deus, eu odeio essa palavra) do ano se sobressaindo enquanto muitos bons lançamentos, de novas bandas e veteranos, sumiriam do mapa sem a chance de aparecer para brilhar no desfile das campeãs do carnaval fonográfico. E eu simplesmente não podia deixar isso acontecer por aqui.

Então arregacei as mangas e sai caçando nas minhas listas do iTunes o que é que, de verdade, tinha mexido comigo nesse ano que vai chegando ao fim. Claro que concordo com muita coisa que está saindo nas listas por aí, mas e aquelas bandas que sempre tem menos mídia e que fizeram álbuns excepcionais nesse ano? É preciso fazer justiça a elas. E faremos dizendo o que deveria ser o óbvio quando falamos de listas de melhores: nem tudo que te venderam o ano inteiro como “os grandes lançamentos” realmente se compara a trabalhos sólidos que sairam em círculos menores.

Com isso dito, começamos pelos discos mais próximos do cenário pop. Muitas palmas para o lançamento (caça-níquel, é verdade) do disco póstumo de Amy Winehouse, o Lioness: Hidden Treasures, que tem participação especial do Nas e até um cover da interminável “Garota de Ipanema” de Tom Jobim Vinicius de Moraes. Quem saiu da sombra de Amy para virar a cantora #1 do Reino Unido foi Adele, no seu segundo disco, 21, um sucesso estrondoso que ganhou até cover de forró em português e alcançou os mais diferentes públicos possíveis. Nota 10. Se é pra ficar nas cantoras ainda teve o excelente disco da FeistMetals (com climão de trilha sonora de filme italiano), o retorno triunfal de Wanda Jackson (cortesia do redescobridor Jack White) com The Party Ain’t Over, o super-experimental Biophilia da Bjork e o bom recém-lançado álbum de Karina BuhrLonge de Onde.

Falando em discos nacionais, nota dez também para o Moto Contínuo do pernambucano China, o pouco badalado mas cheio de alma Sonhando Devagar do Kassin, o sempre irretocável Lenine com seu Chão e o novo queridinho do cenário alternativo, Passo Torto, com o disco homônimo escrito e executado por Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, super-time de astros indie brasileiros. Do lado mais acústico do pop, destaque para o J. Mascis (do Dinossaur Jr.) e seu Several Shades of WhyThurston Moore (do agora finado Sonic Youth) com Demolished Thoughts, o menestrel das sombrasTom Waits e seu sugestivo Bad as Me e PJ Harvey com seu mais recente Let England Shake.

Passando para os discos mais do rock n’ roll, todos os louros para Dave Grohl e seu Foo Fighters em Wasting Light, um dos melhores discos da carreira da banda comandada pelo ex-Nirvana. Tem um disco ao vivo que merece demais entrar nessa lista, o Live on Ten Legs do Pearl Jam, daqueles que dá vontade de estar presente no dia de sua gravação. A crítica bateu muito em The King of Limbs do Radiohead, mas ele tem linhas de baixo magníficas e composições sólidas pra deixar muitas outras bandas querendo ser o grupo comandado por Thom Yorke. Stephen Malkmus (ex-Pavement) voltou com um de seus trabalhos solo mais interessantes, Mirror Traffic, muito equilibrado entre melódico e catártico. Isso sem falar na reunião do Blink-182 com o muito aguardado Neighborhoods, prato cheio para os fãs mais velhos e para a molecada que curte o som do trio mas não pegou a fase áurea da banda.

A caminho do Brasil, é necessário marcar o 4º álbum de estúdio do Arctic MonkeysSuck it and See, provavelmente o mais legal de toda a discografia da banda. Quem também lançou o quarto LP da carreira foi o Art Brut com Brilliant! Tragic!, mais uma vez no equilíbrio perfeito entre o brit rock e o punk. Diretamente da Rússia, o Riding The Diplodoc faz um som mais cabeçudo e instrumental, mas não pode ficar de fora da lista com seu soberbo Dilettantes Like Lions, um disco absolutamente irrepreensível em todos os sentidos. Sempre na vanguarda do rock alternativo, o …And You Will Know Us By The Trail of Dead começou o ano lançando a tijolada Tao of The Dead, seu disco mais empolgante desde Worlds Apart (2005). Por aqui, o Los Porongas roubou a cena com seu O Segundo Depois do Silêncio e não dá para não falar do cada vez mais elétrico Fujiya & Miyagi e seu mais novo lançamento, Ventriloquizzing.

O hype, o freak e o rap

Com o fim gradual da emofobia no Brasil, destaque para veteranos do gênero que voltaram a brilhar em 2011, a começar pelo brilhante Daybreak, terceiro disco da trilogia de renascimento de Chris Conley e seu Saves The Day. Filhos dessa mesma geração, a primeira a explodir com o rótulo emocore, o The Get Up Kids voltou muito mais maduro com o cheio de teclados em There Are Rules. Fãs do rock mais gritado vão pirar com No Devolución, mais novo álbum dos americanos do Thursday. Tivemos ainda o incansável Samiam e seu oitavo álbum, Trips, preenchendo de esperanças os corações dos fãs da banda. E por último mas não por isso pior, 2011 também teve o The Appleseed Cast e seu surpreendente Middle States, um ilustre desconhecido da maioria que merece uma audição atenta nesse final de ano.

2011 também foi um bom ano para os sons esquisitões. Passada a falação em cima do Animal Collective, que dividiu a crítica no ano passado, merece destaque o segundo álbum dos caras mais freaks de Seattle, Helplessness Blues do Fleet Foxes, e o som cada vez mais funkeado dos japoneses do Lite em seu For All The Innocence. Entre os meus favoritos deste ano estão também o quase-divino The Cosmic Birth of Shinju TNT do Akron/Family, o viajante Asleep On The Floodplain do Six Organs of Admittance e o belíssimo Mother Whale, dos americanos do Cats and Cats and Cats. Por aqui, muito barulho com cortesia do ótimo Satanique Samba Trio e seu Bad Trip Simulator #1, além da reaparição do Mundo Livre S/A com Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa. Isso sem falar no mais recente esforço dos escoceses do Mogwai (Hardcore Will Never Die, But You Will) e o pesado Let Yourself Be Huge, do misterioso Cloudkicker.

E se é pra falar de som pesado, não dá para deixar de falar da volta por cima dos americanos do Machine Head com Unto The Locust, que só não foi o disco de metal mais comentado do ano por conta do êxito do Mastodon e seu brilhante The Hunter. Destaque total para o retorno de Joey Belladonna ao Anthrax no rapidíssimo e moderno Worship Music, para o cáustico novo álbum das meninas do SubrosaNo Help for the Mighty Ones, para a ascensão do Beware of Safety com o progressivo Leaves/Scars e para os capixabas do Mukeka di Rato, que fazem seu disco mais hardcore desde Acabar com Você(2001), a porrada Atletas de Fristo. Outra barulheira que ressurgiu das cinzas veio com o recém-reformado Atari Teenage Riot e seu Is This Hyperreal?, um dos petardos eletrônicos que sairam em 2011.

Mais leve mas nem por isso menos louvável é Monkeytown, novo álbum do Modeselektor, uma salada de influências que vai do dubstep e do breakbeat ao rock alternativo e ao hip hop experimental, lançamento muito surpreendente da discografia dos caras. E para fechar a nossa lista, três álbuns que representam o rap. Nota onze para a volta dos Beastie Boys com The Hot Sauce Comittee Part 2, disco que marca a vitória de Adam Yautch (MCA) contra o câncer. No Brasil, as palmas ficam para Criolo por ter unido a crítica em volta de Nó Na Orelha (sem dúvida o lançamento mais badalado no Brasil em 2011) e para o paulistano Emicida e seu Doozicabraba e a Revolução Silenciosa, sua obra mais completa até agora.

Manchete de amanhã: jornalista de Franca (SP) é assassinado após assalto

De nada adiantou anos e anos de aperfeiçoamento contínuo de virilidade: estou sozinho em minha nova casa pela primeira vez e estou cagando de medo. Tá, não é assim um temor incontrolável, de se assustar com o próprio caminhar. É mais uma sensação de sofrimento antecipado por saber que qualquer barulho gerará na minha imaginação dezenas de possibilidades e nenhuma se poderá chamar de otimista.

Por isso decidi que ficaria a noite inteira na sala. Não sei qual foi o motivo dessa resolução, mas até agora ela me pareceu astuta e coerente. Deve ser porque, ao estar no andar térreo da casa, eu crie a falsa certeza de que verei o ladrão no exato instante em que ele entrar; ao passo que, estando no quarto que fica um piso acima, eu seria facilmente abatido quando estivesse prestes a fechar o livro e desligar a luz para dormir.

Assim, logo que entrei em casa, fiz questão de subir correndo as escadas que levam ao quarto para pegar computador, cabo, meu livro e cigarro. Quer dizer, eu não achei o cigarro. Demorei alguns minutos abrindo gavetas, revirando a prateleira e nada daquele maço velho de Marlboro aparecer. Me dei por vencido e desci para a sala, contente por meu plano estar dando certo e esperançoso de achar o cigarro em meio à bagunça da mesa da sala de jantar.

Mas o cigarro não estava lá, nem na cozinha, nem em cima do armário de madeira, nem jogado perto da porta, nem em cima da lareira, nem embaixo do sofá. Um pontada de desespero se abateu sobre mim: como eu passaria essa noite sabendo que não havia cigarros pela casa? Eu havia combinado comigo mesmo que se o ladrão pegasse pesado e não aceitasse nenhuma negociação sobre o que ele deveria roubar, então eu apenas pediria para fumar um cigarro. “Leve tudo, meu bom ladrão”, eu diria, sentado na escada e amarrado ao corrimão. “Mas me deixe fumar um cigarro”.

À parte os devaneios causados pela ausência de tabaco numa noite obscura, o fato é que já são quase 11 horas da noite e até agora o placar da paranóia está assim: 2 barulhos estranhos (a máquina e a geladeira), 1 barulho irreconhecível (como se uma pedra tivesse caído no telhado) e 0,5 cigarro – sim, uma bituca usada da semana passada está descansando em cima do cinzeiro e testando meus limites. Para alívio geral, ainda não avancei o sinal da civilidade e hesito ressuscitá-la.

PS: está passando Jamaica Abaixo de Zero na tevê. Se o ladrão chegar, terei de pedir para que me deixe terminar de ver esse filme. É sorte a minha que a tevê fica em frente à escada em que estarei amarrado.

Crise de relacionamento

* por Thiago Fagnani

É de comum acordo que um relacionamento deve ser recíproco. Ou estou errado? É cansativo fazer tudo pela pessoa, se sacrificar e até gastar o dinheiro que não tem para o bem desta e do relacionamento. Mas em uma determinada hora, você precisa dar um basta!

Terminar o relacionamento? Não, vamos com calma também. Não me vejo com outra e também sou contra a prática do adultério, ou seja, nada de “trocar o óleo”. Não tenho coragem e nem vontade. Mas executei o conhecido “gelo”. Isso mesmo: cansei de ser tratado como um qualquer.

Deixei de ligar, deixei de dar bom dia ao acordar. Parabéns pelo aniversário? NÃO RECEBI NO MEU! Sou meio vingativo, signo de escorpião, sangue italiano, esquentadinho. Mas claro que perguntava para os outros sobre a pessoa: “como ela está?”, “como estão as coisas em sua casa?”. Sei que o clima anda pesado por lá, muitas fofocas, intrigas, problemas familiares, mas não tenho nada a ver com isso, não tenho culpa!

Agora, com licença, conversarei diretamente com a personagem. Assunto particular, espero que entendam.

Sempre estive do seu lado, sempre bati no peito e falei/gritei para todos ouvirem: EU TE AMO! Nunca deixei ninguém falar mal de você, sempre lhe defendi e protegi, só que desta vez fui tomado pelo silêncio e tive que concordar com as críticas que foram feitas, sem contar as risadas. Isso mesmo, você virou uma piada.

No entanto, eu percebi que você queria mudar. Notei sua insatisfação com este momento terrível que estamos vivendo, sei que não quer um relacionamento frio e distante, afinal precisamos um do outro, não é? E seu esforço em tentar fazer algo já me animou um pouco.

No dia 20/11 você quis sair comigo, eu aceitei e nos divertimos bastante, apesar do clima estranho. Uma semana depois, falei que precisava ir à casa dos meus pais, coisa que eu sei que DETESTA. E não é que você foi? Conversou com o papai, levou flores pra mamãe e até lavou a louça!!

Não é exatamente o relacionamento que quero, estamos nos acertando ainda, falta MUITA coisa (e você sabe o que) para voltarmos a ser o que éramos, mas este é o caminho. No próximo dia 4 queria algo muito especial, preciso da sua ajuda. Meus pais vão viajar e deixarão minha avó comigo, me ajuda a banhá-la? Se não quiser, eu entendo, é uma tarefa muito complicada. Caso faça, será uma grande prova de que realmente me ama.

Thiago Fagnani é jornalista, repórter de campo da Rede Vida de Televisão e um verdadeiro torcedor do Palmeiras. Sua paixão é inexplicável  como são inexplicáveis as brigas entre casais. Ele escreveu este texto a convite do Pitacos Perdidos e espera, ansiosamente, que vocês entendam a ironia.