a música e as coisas: 2

“Nós somos a música. Nós somos a coisa em si”. 
Virgina Woolf em Um Esboço do Passado

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o despertador do celular me acorda. não levo 10 segundos para abrir o Spotify e checar se meu presente chegou. chegou: o novo disco de Herbert Vianna está na rede. a chegada de um disco de Herbert Vianna causa em mim uma sensação parecida com a ansiedade que se instala na barriga no dia em que vou fazer uma grande viagem. dá pra comparar ao impacto que sinto quando acordo pela primeira vez na minha nova casa, depois de uma mudança. ou a adrenalina de um dia de formatura, quando sei que, tecnicamente, depois daquele dia, não serei mais o mesmo.

isso talvez porque eu nunca mais fui o mesmo depois de um disco de Herbert Vianna.

fico na cama olhando para o celular. então quer dizer que se eu apertar o play, as músicas vão simplesmente começar a tocar? acho estranho. nunca foi assim. fiquei duas semanas aguardando “O Som do Sim” (2000) chegar na minha pequena grande cidade do interior, indo todo dia na amada Ary Som para fazer a mesma pergunta, “chegou?”, e ouvir a mesma resposta, “não”. voltava pra casa, entrava escondido na internet com conexão discada – proibida nos dias de semana – e me contentava em escutar 40 segundos de uma faixa, Partir, Andar, que estava disponível no hotsite do álbum. nunca mais esqueci a palavra “buffering” (carregando) de tanto que fiquei olhando pra ela enquanto a conexão de 20 anos atrás tentava me entregar 10% de uma música. 

ia pra escola cantarolando aquele trechinho na minha cabeça, de modo que ele durasse em mim até a hora de poder voltar pra casa e dar play de novo.

levanto da cama, dou bom dia pra minha companheira, ensaio explicar pra ela que hoje é um dia especial e que este celular na minha mão é mais do que um celular, ele é a atendente da Ary Som me dizendo “chegou!”, mas desisto; depois penso que pode ser útil avisá-la que amanhã eu não serei mais o mesmo, mas aí receio que ela me avalie maluco demais. então, como um adolescente descrente que haja alguém no mundo capaz de compreendê-lo, desesperado para encontrar um lugar e ficar sozinho com a música que lhe salva, me tranco no banheiro – e aperto o play.

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